segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dia de Todos os Mortos – um exercício de Amor


GABRIEL CHALITA

Hoje é o dia do Amor. Do amor que devotamos às pessoas amadas que partiram. A celebração do amor, não pela magia do contato físico, mas pela doce eternidade das lembranças daqueles que perduram vivos dentro de cada um de nós. É de Mia Couto, escritor africano, o aforismo que tão sabiamente traduz esse sentimento : “ Morto amado nunca mais para de morrer”.

Integra a história da humanidade o gesto de adorar, de homenagear, de rezar pelos mortos. Cada cultura revela seus costumes nas diferentes formas de amor à memória de seus mortos. A Igreja Católica dedica um dia do ano para rezar e celebrar a vida eterna de nossos entes queridos. Esse dia, desde o século XIII, é solenizado em 2 de novembro. Dia 1º é dia de Todos os Santos; dia 2, dia de Todos os Mortos.


Talvez o maior medo e maior mistério da vida humana seja o da morte. Justamente pelo mistério que ela encerra. Desde sempre o tema da morte me provoca densa reflexão, num misto de tristeza e alegria. Gostaria de compartilhar esse sentimento com vocês. Um dos contos do meu livro Homens de Cinza, que será lançado no próximo dia 10, perpassa por esse tema.

Antecipo a vocês o conto O riso de Everson:

Everson era coveiro. Tinha medo de defunto. De caixão não tinha. Não achava de bom gosto abrir a urna para despedidas no cemitério. Isso devia ser feito antes. Quando acontecia não olhava. Aprendeu com o pai, também coveiro, que o último que olha fica com a imagem do morto perturbando durante um bom tempo.

Não se incomodava com choradeira nem com desmaio de última hora. Ficava com a pá e o chapéu esperando as despedidas e depois cumpria a função. Achava falta de respeito ficar conversando. Gostava mesmo era de imaginar a vida do partinte. Fazia isso, observando o jeito da família. Quando quem sobrava era a viúva, olhava com curiosidade se estava chorando de obrigação, de alívio ou de tristeza. Quando era o viúvo, reparava na disposição e nas mulheres distantes para perceber alguma intenção.
Tem gente que chora de remorso, tem gente que chora de saudade. Everson percebia a diferença, mas não falava porque não era dado a comentários. Desde cedo aprendeu em casa que o melhor é ficar quieto. Quanto mais se fala, mais bobagem se traz ao mundo.

Tem gosto por matemática. Conta as pessoas e compara com outros enterros. Gente jovem leva mais gente e tem mais dor, a não ser quando o velho é muito querido ou importante. Tem um caderno de anotações em casa com o nome, data e freqüência dos enterros. Em primeiro lugar, em popularidade, está o Padre João. Coisa linda ver a cidade inteira no cemitério. E ele morreu velho, bem velho. O falatório não foi econômico. E não abriram o caixão. O que menos gente levou foi um tal de Antonio do Nascimento. Ninguém. Everson até rezou por ele em consideração. E depois despejou a terra.

Em dias de chuva, partiam mais cedo os que deixavam seus mortos. Em dias de sol, acompanhavam até o final.

Caixão pequeno cortava o coração. Não entendia a falta de oportunidade de fazer coisa certa ou errada na vida. Injustiça. Caixão de virgem, desconfiava. Já viu muito moça freqüentar o lugar dos mortos acompanhada e depois vestir a pose de recatada.

Desaforo era família desleixada que deixava o túmulo sujo. Pouco caso com a casa do morto. Quando dava, limpava os abandonados. Gostava de ler os escritos nos túmulos. Perdia tempo porque lia devagar. Mas gostava.

Em um dia qualquer, quase fechando o portão, conheceu Maria Rita. Lembrou de tê-la visto em algum sepultamento. Buscou na memória e achou o dia da partida do marido. Não reparou muito porque abriram o caixão. Além do que achava desrespeitoso com o defunto qualquer reparação mais saliente.

Maria Rita veio com umas poucas flores colhidas de alguma pracinha e um maço de velas. Limpou e fez jeito de quem faz prece. Muito econômica na opinião de Everson. Nem bem se benzeu e já terminou. Não chorou. Pouca gente chora depois de algum tempo.

Pediu fogo. Everson deu. Distraída queimou o dedo. Riu. Everson também riu. Perguntou a ele se tinha medo. Ele riu e maneou a cabeça. Perguntou o nome. Everson riu e respondeu baixinho. Coçou o rosto, arrumou o cabelo, falou alguma coisa consigo mesma e sem despedir se foi.

No dia seguinte voltou. Veio acompanhando um enterro. Não chorou. Ninguém chorou. Era defunto velho e parece que sacrificava a família. Foram embora e ela ficou. Falou o seu nome e riu. Everson também riu. Perguntou se ele tinha vergonha. Ele riu. Ela deu um beijo de leve no rosto corado. Ele riu. Foi a primeira vez que uma mulher beijou Everson, que ele lembre. A mãe morreu com ele ainda menino. E o pai, homem muito trabalhador não era dado a intimidades com o filho. O pai também já tinha sido enterrado. Pouca gente foi. Os outros dois coveiros fizeram o serviço. Everson não quis que abrissem o caixão. Chorou depois que os outros se foram.

No terceiro dia Maria Rita, sem procissão alguma, voltou. Trouxe só vela e de novo pediu fogo. Everson estava enrolando cigarro de palha. Maria Rita quis experimentar. Tossiu. Everson riu. Falou a vida inteira dela. Everson ouviu. Falou inclusive do falecido e de sua falta de bondade. Falou do quanto ele a agredia. Falou de alívio. Everson quase chorou. Teve vontade de protegê-la mas lembrou-se do pai que sempre dizia que o melhor era esperar.

Ficaram juntos, ela falando e ele ouvindo até o pôr do sol. Ela não reparava nessas coisas , ele sim. Falava com alegria e ele ouvia com disposição. Voltou alguns outros dias. Deu alguns outros beijos. Tudo com muito respeito. E ele ria. Iniciativa não tinha nem para dizer sim nem para dizer não. Mas gostava.

Reparou nos seus olhos depois de um beijo de namorado e pediu a Deus, tirando o chapéu que aqueles seus olhos de gente viva o perturbassem para sempre. Maria Rita falou em casamento. Everson riu.

O tempo passou e Maria Rita nunca mais voltou ao cemitério. Everson vivia os dias esperando. Enrolava o seu cigarro de palha, varria o chão, limpava, jogava terra e escarafunchava os seus sentimentos. Morrido não tinha, senão ele teria visto. Doença? Mudança? Ele pouco descia até a cidade. O que precisava tinha por perto.

Semanas. Meses. Até que em outro sepultamento, lá estava ela. De luto. Chorosa pelo marido morto. Everson não entendeu. Abriram o caixão. Ele olhou o morto. Vestia terno cinza. Teve medo depois. Os olhos estavam lá, cerrados, mas estavam lá. Arrependeu-se. Com o chapéu e a pá esperou as despedidas. Pensou consigo mesmo. Não entendeu. Jogou terra e se foi.

No dia seguinte ela voltou. Trouxe umas flores e um maço de velas. Pediu fogo e falou da rudeza do defunto. Do ano triste de um novo casamento infeliz. Era violento também. Que bom que morreu.

Everson ouviu. Ela deu um beijo de despedida e dessa vez um abraço. Everson riu.

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