Flores no túmulo de Tancredo
Para onde pender Minas Gerais, se inclinará o Brasil, imaginam os estrategistas de José Serra e Dilma Rousseff. A candidata do PT inaugurou sua campanha solo com um périplo mineiro e – entre tantos lugares! – enveredou pelo caminho de São João Del Rei, até o túmulo de Tancredo Neves, no qual depositou flores. O gesto recende a oportunismo eleitoreiro paroxístico, e também é isso. Mas não é só isso: Dilma está fazendo uma declaração sobre a história – ou melhor, uma declaração contra a história.
Lula e o PT acercaram-se de Delfim Netto, celebraram com Jader Barbalho, aliaram-se a José Sarney, trocaram figurinhas com Paulo Maluf, assopraram as cicatrizes de Fernando Collor. O que é um Tancredo perto disso? Uma diferença, entre tantas, está na circunstância de que a figura homenageada deixou o mundo dos vivos para ingressar no firmamento dos símbolos. Tancredo é uma representação: o ícone da transição pactuada que deu origem à Nova República. O PT vilipendiou aquela transição e decidiu não fazer parte da ordem que nascia. Primeiro, expulsou seus três deputados que votaram por Tancredo no Colégio Eleitoral. Depois, recusou-se a homologar a Constituição de 1988. O que fazia Dilma no berço simbólico de tudo o que o PT queimou na maior encruzilhada de nossa história recente? A coerência absoluta é privilégio das seitas políticas, responsáveis apenas perante seus próprios dogmas.
Todos os partidos de verdade, aqui e alhures, experimentam ambivalências ao olhar para trás, na direção de seu passado. Mas o lulo-petismo encontrase numa categoria separada. A narrativa histórica implícita na peregrinação ao túmulo de Tancredo situa-se em algum ponto entre a esquizofrenia e o distúrbio bipolar. E, no entanto, há método na loucura. O PT surgiu como leito de confluência de muitas águas e diferentes histórias.
Na média, identificava-se como um partido de ruptura, socialista mas avesso ao “socialismo real”. Depois, à medida em que se aproximava do poder, converteu-se num partido da ordem. A conversão, contudo, jamais assumiu as formas de uma releitura honesta de seu passado e de uma crítica política de suas ideias originais. A antiga corrente liderada por José Genoíno bem que tentou, mas o PT não seguiu a dura trilha de aggiornamento pela qual, ao longo de meio século, os partidos marxistas da Segunda Internacional transformaramse na atual social-democracia europeia.
Na hora do triunfo de Lula, a distância incomensurável entre palavras e atos teve que ser vencida pelo recurso a um salto fraudulento: a Carta aos Brasileiros, produzida por ex-trotskistas e assinada pelo candidato como negação do programa partidário. Não é trivial encarar o passado quando se joga escondeesconde com a política.
Lula pilotou a política econômica com o software elaborado por FHC e foi buscar no ninho tucano o operador dos manetes do Banco Central. Dilma jura que rezará as três orações do livro da ortodoxia: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário. Paralelamente, as resoluções do Congresso do PT de 2007 lamentam a queda do Muro de Berlim e reiteram tanto as “convicções anticapitalistas” quanto o compromisso com a “luta pelo socialismo”. No partido, desde as crises da cueca e do caseiro, ninguém mais ousa sugerir um aggiornamento – uma carência que se traduz pelo agravamento dos sintomas de esquizofrenia. A dicotomia desenvolvese como uma bifurcação de negações complementares: a prática de governo lulo-petista não pode encontrar expressão na plataforma partidária, e as palavras escritas pelo partido não podem encontrar correspondência nos programas de governo.
Já existem duas versões da história do Brasil, tal como narrada por Lula. A original, apoiada na chave da ruptura, diz que a nação alcançou a independência com a inauguração de sua presidência, após a longa noite de “500 anos” na qual “a elite governou este país”. A segunda, apoiada na chave da continuidade, diz que Lula restaurou uma estrada de emancipação projetada por Getúlio Vargas (“o presidente que tirou toda a nação de um estágio de semiescravidão”), implantada por Juscelino Kubitschek (“que conscientizou o país de que o desenvolvimento nacional é uma prerrogativa intransferível de um povo”) e pavimentada por Ernesto Geisel (“o presidente que comandou o último grande período desenvolvimentista do país”). As duas versões lulistas são contraditórias entre si, mas convivem na harmonia perfeita do distúrbio bipolar.
No inverno de 1077, o imperador excomungado Henrique IV viajou ao castelo papal de Canossa e aguardou à porta, sob a neve, por três dias e três noites, até receber o perdão de Gregório VII. A peregrinação de Dilma à Canossa tropical do lulo-petismo equivale à adição de um novo capítulo na versão continuísta da história do Brasil. O que o capítulo adventício acrescenta ao conjunto, em termos de sentido? Há uma invariante nas narrativas lulopetistas sobre o passado, que é o conto de uma queda. Nas duas versões, a presidência de FHC representa uma catástrofe existencial: a venda do templo e a conspurcação dos lugares santos. Para todos os efeitos, FHC desempenha o papel de chefe supremo dos “exterminadores do futuro”, na frase fresca de uma Dilma que acabara de ajoelhar-se diante do túmulo de Tancredo. O capítulo novo, escrito em São João Del Rei, estende a narrativa da continuidade e demarca o lugar exato do abismo.
A escalada nacional rumo à montanha da glória começa em Vargas e prossegue com Juscelino, Geisel e Tancredo, até desviar-se com FHC, projetando a nação nas profundezas do vale da desolação. Sob a liderança de Lula, a montanha foi afinal conquistada. O despenhadeiro, porém, continua à vista e uma melodia encantatória ameaça reconduzir-nos, de olhos vendados, para a perdição. Dilma depreda a história – a nossa, a dela, a do PT. Mas há método na loucura.
* Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP
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