Por Aécio Neves, para a edição especial dos 45 anos de VEJA
Olhando para trás, é difícil
acreditar que tantas mudanças tenham ocorrido em tão pouco tempo, somente dois
anos: 1984 e 1985.
Tive o privilégio de, ainda
muito jovem, com 24 anos, acompanhar de perto aquele período decisivo na vida
de nosso país, e de, com ele, aprender várias lições – uma, especialmente
importante: a de que cada geração tem seu compromisso com a história.
Por isso, é necessário que
os líderes estejam sempre à altura dos desafios de seu tempo.
Foi fundamental para o
Brasil, naquele momento, contar com homens como Tancredo Neves, meu avô, e
Ulysses Guimarães, que, entre tantos outros, nos conduziram, com grandeza,
naquela travessia.
A intensidade daqueles dias
me acompanha até hoje – na memória e no coração.
Primeiro, as viagens pelo
Brasil, os comícios das Diretas e a frustração pela não aprovação da emenda
Dante de Oliveira [a emenda das Diretas-Já].
Depois, os dias que se
seguiram à renúncia de Tancredo ao governo de Minas, quando me mudei com ele
para um apartamento na quadra 206 Sul em Brasília, onde fui espectador
privilegiado da memorável articulação política que conseguiu vencer vinte anos
de arbítrio.
Fazia-se política pelo
Brasil.
Foi um trabalho de artífice,
minuciosamente planejado por grandes brasileiros para que a mobilização
nacional daqueles dias pudesse garantir, de alguma forma, aquele que era nosso
maior objetivo: o fim do autoritarismo.
Nosso reencontro com a
liberdade e a democracia.
Trabalho que culminou no
lançamento de Tancredo como candidato das oposições à Presidência da República
e em sua vitória no Colégio Eleitoral. Três meses depois, ele morreria. Apenas
três meses.
Três meses em que
testemunhei, dia e noite, a luta de um homem em defesa de seu povo.
Três meses em que
testemunhei, sem saber – porque muitas vezes só o tempo nos dá a compreensão do
que vivemos -, um homem cumprindo seu destino.
É a minha lembrança pessoal
desse período, entre a eleição e a morte de Tancredo, que, a convite de VEJA,
tento dividir com você, leitor, quase trinta anos depois. Faço isso sabendo
como é difícil encontrar o equilíbrio quando a história coletiva ainda é
memória pessoal.
A vitória no Colégio
Eleitoral foi fruto de uma bem-sucedida estratégia conduzida por diversos e
diferentes atores, unidos pelo objetivo de pôr fim à ditadura. Estratégia que
incluiu decisiva mobilização popular e uma paciente costura de bastidores.
O 15 de janeiro de 1985
amanheceu diferente em todo o país. Carros buzinavam em todas as cidades,
bandeiras ocupavam ruas. À noite, no Rock in Rio, Cazuza embrulhou-se na
bandeira brasileira, saudou a democracia recém-conquistada e cantou Pro Dia
Nascer Feliz.
Para grande parte das
pessoas, a transição democrática terminava ali, com a eleição de Tancredo. Mas,
por mais que esse fosse um marco fundamental, sabíamos que não era o fim do
processo. Ainda existiam focos de resistência no regime militar, e fontes do presidente
eleito o aconselhavam a ser prudente e manter a vigilância.
A própria VEJA, em 2005,
revelou como, enquanto o país comemorava, uma delicada operação política
mantinha seu curso nos bastidores.
A viagem ao exterior
realizada por Tancredo e os encontros com chefes de Estado cumpriram um papel
estratégico que muitos não perceberam: o de tornar nosso processo de
redemocratização irreversível. Ao receberem aquele senhor baixinho, inteligente
e bem-humorado, simbolicamente, as antigas democracias reconheciam e saudavam a
nova democracia brasileira.
Voltamos ao Brasil e nos
mudamos para a Granja do Riacho Fundo, onde os trabalhos continuaram.
Tancredo sabia que repousava
sobre seus ombros a responsabilidade pela transição democrática. Tinha
consciência de que o país caminhava em terreno ainda frágil. Temia
especialmente que a percepção sobre alguns problemas de saúde que lhe estavam
surgindo pudesse, naquele momento, servir como pretexto para as forças
políticas que buscavam o retrocesso.
Ele não podia correr riscos.
Cada dia vencido era mais um passo na direção da tão sonhada democracia.
Provavelmente, por isso, descuidou-se tanto de sua saúde. Tinha uma missão a
cumprir, e a cumpriria.
Em 14 de março, véspera da
posse, seguimos para a missa no Santuário Dom Bosco, em Brasília. Ele já não se
sentia bem. Voltamos para casa e, com a piora de sua saúde, chamamos os
médicos.
Sentei-me a seu lado na cama
e estávamos os dois sozinhos, quando ele me olhou com intensidade e disse:
– Chame o Zé Hugo (José Hugo
Castelo Branco, que teria sido seu ministro da Casa Civil) e peça a ele que
traga os atos de nomeação do ministério.
Sugeri que deixasse para o
dia seguinte. Ele insistiu. Os atos chegaram.
Com muita dificuldade, com
as mãos trêmulas, ele os assinou um a um e mandou que fossem imediatamente
publicados. Só mais tarde entendi por quê. No dia seguinte, quando ficou claro
que ele não tomaria posse, ainda teria havido tentativas de criar dificuldades
para a posse do vice-presidente, José Sarney.
Tarde demais. Graças ao
último esforço de Tancredo, o Brasil já contava com um novo ministro do
Exército, que detinha o controle da tropa e era leal ao novo governo
democrático.
Os médicos chegaram e nos
informaram que Tancredo precisaria ser internado e operado imediatamente.
Sugerimos que fosse levado a São Paulo. Eles nos disseram que não se
responsabilizariam e que não o acompanhariam na viagem.
Alegaram que ele não tinha
condições de ser deslocado e ressalvaram que, por se tratar de um problema
superficial, Tancredo poderia tomar posse no dia seguinte.
Ele nunca tomou posse.
O país conhece a sucessão de
erros e irresponsabilidades que se seguiram e que, ainda hoje, me revoltam como
brasileiro e me ferem como neto.
Ao entrar no hospital, ele
se dirigiu a seu filho, meu tio, Tancredo Augusto e disse:
– Fiquem atentos. Lembrem-se
do que aconteceu com Juscelino e Jango.
Esse comentário, por si só,
revela a tensão que vivíamos naqueles dias. Preocupado com o que poderia
acontecer caso não tomasse posse, ele insistiu para não ser operado naquele
momento:
– Vocês precisam me ajudar a
conseguir tomar posse. Depois, podem fazer o que quiserem comigo.
No hospital, sua única
preocupação era o país. Ciente da grande frustração popular e das dificuldades
que José Sarney poderia estar enfrentando, ditou-me uma carta para ser
encaminhada ao presidente em exercício e que pudesse ajudar a legitimá-lo,
naquele momento, no exercício da Presidência da República.
Foi o último documento que
ele assinou.
Passei todos aqueles dias e
noites no hospital. Ia diariamente à UTI, tentava animá-lo com notícias
otimistas. Numa dessas ocasiões, ouvi dele suas últimas palavras. Enfraquecido
no leito, cansado, olhando para o infinito, resignado, ele disse:
– Eu não merecia isso.
Não merecia. O Brasil também
não.
Há uma passagem do Antigo
Testamento, reproduzida na capa do extinto Jornal da Tarde na edição sobre sua
morte, da qual sempre me recordo: “E o Senhor lhe disse: ‘Eis a terra. Eu a
darei à tua posteridade. Tu a viste com teus olhos, mas não passarás a ela’ ”.
Crescemos, nós, os netos,
ouvindo de meu avô o seu testemunho pessoal sobre os intensos momentos que ele
vivera como personagem da história nacional. “Só se lembram de mim nas horas de
tempestade”, costumava dizer.
Relembrava especialmente os
momentos que antecederam o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Ele jamais
deixou de lado a grande admiração que nutria pelo ex-presidente, que, em suas
palavras, havia chegado ao extremo de entregar a própria vida por amor ao
Brasil.
Descrevia, sempre
emocionado, a pressão daquelas horas e a comoção popular no enterro de Vargas,
que entendia como autêntica salvaguarda que impediu um golpe político.
Recorro a palavras que já
foram escritas por um de nós para encerrar este testemunho pessoal e dividir,
com vocês, um pouco de minha saudade, afeto e respeito.
Mal sabíamos – nós e ele –
durante todos os anos em que, após o almoço de domingo, ouvíamos, com atenção,
seus relatos que, três décadas depois da morte de Vargas, uma outra multidão,
em torno de um outro caixão, velaria o corpo de um outro presidente.
E que, por amor ao Brasil,
ele também deixaria a vida para entrar na história.
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